PENSAR COMO DEUS
Written by José Enrique GalarretaMc 8, 27-35
Nos capítulos 7 – 11 do Evangelho de Marcos podemos reconstruir (mas sempre com reservas) um itinerário de Jesus com profundo significado. Segundo Marcos, Jesus prega na Galileia (caps. 2-7), faz uma incursão na Fenícia (7,24-8), regressa à Galileia, em redor do lago (8 e 9), e vai percorrendo os lugares da Galileia, alternando a pregação com as curas, mas "queria que ninguém o soubesse" (9,30).
A partir daí, começa uma "subida a Jerusalém", passando por Jericó (10,46), por Betfagé e Betânia, até chegar à cidade (11ss) onde terminará a sua vida mortal.
Este itinerário exterior é reflexo de um "itinerário interno", motivado pela reacção das pessoas da Galileia e pela própria consciência messiânica de Jesus. Produziu-se a crise galileia, o afastamento das pessoas e de alguns dos seus discípulos, reflectida em Marcos e expressa de modo mais claro em João 6.
Este afastamento acontece porque Jesus defrauda intencionalmente a esperança messiânica tal como as pessoas a tinham, alimentada pela interpretação oficial dos líderes religiosos. Jesus deixa de se mostrar tão generosamente como antes, afasta-se da popularidade, dedica-se ao ensinamento intensivo dos seus discípulos e vai assumindo a convicção profunda do seu destino: subir a Jerusalém para ali ser levado à morte pela oposição radical dos chefes locais.
Este é o contexto da passagem que hoje lemos. Nele aparece a pergunta chave: "Quem é este homem". A resposta mostra as opiniões, tão pouco aceitáveis, das pessoas, e a opinião dos discípulos, expressa por Pedro: Jesus é o Messias. Mas a sua noção de Messias não é compatível com a rejeição e muito menos com a morte na cruz.
Pedro expressa a sua total oposição a essa noção de Messias e Jesus reage violentamente diante das palavras de Pedro, chama-o de Satanás e o acusa de ter uma ideia do Messias que não provém de Deus mas das conveniências humanas.
O evangelho de Marcos aproveita a situação para colocar aqui nos lábios de Jesus umas máximas morais sobre a cruz e a negação de si mesmo.
Reflexão
Jesus, o Messias que não esperavam, o servo sofredor que tira os pecados da nação, os pecados do mundo. Difícil de aceitar para todos, inclusive para Pedro, a quem Jesus chama de Satanás, porque "pensa como os homens e não como Deus".
É surpreendente a violência com que Jesus reage diante das palavras de Pedro. Conhecemos melhor essas palavras pela redacção de Mateus (16,22): "Deus te livre, Senhor! Tal coisa não te sucederá". E Jesus rejeita-o como tentador "Queres fazer-me cair". Podem-se interpretar essas palavras como reflexo de uma verdadeira tentação de Jesus, a presença durante a sua vida das tentações simbolizadas na quarentena do deserto ("dar-te-ei todos os reinos de mundo...", tentação de poder, de messianismo davídico exterior).
Na mesma linha se poderia interpretar a reacção de Jesus em João 6,15, a sensação de pressa em afastar-se das pessoas que o querem tornar rei, e o seu refúgio na oração, no monte, a sós, como nas grandes ocasiões e dificuldades da sua vida.
Seja qual for a sua interpretação, é inegável que esta fisionomia religiosa foi e continua a ser uma profunda tentação para as pessoas e para a Igreja. Mas é uma tentação completa, não uma simples amostra de idolatria em que se trata descaradamente de "servir a outro deus", senão o mal oferecido "sob a capa de bem" como diria Inácio de Loyola, e por isso é a mais temível.
A tentação consiste em múltiplos aspetos, mas todos eles são derivados do que Jesus deteta em Pedro: "Tu pensas como os homens, não como Deus". Há uma maneira humana de conceber a vida e a religião, e há uma palavra que introduz novos critérios, não poucas vezes incompatíveis com os meramente humanos.
Assim, como em tantas ocasiões nos Evangelhos, aquela situação histórica representa um confronto religioso permanente na humanidade (instituições e pessoas). O reino do Messias como reino exterior, que inclui politica, prosperidade e esplendores de culto; o reino dos céus como conversão manifestada em obras.
Salvar a vida; perder a vida. O Messias triunfante; Jesus crucificado. A Igreja que triunfa como única mediadora entre Deus e os homens; a Igreja que serve sofrendo no silêncio... Dois mundos, dois messianismos, duas mentalidades, duas religiões. Uma é a de Jesus, a outra é a que matou a Jesus.
Essa mesma mentalidade que matou a Jesus é a que pode matar a Igreja, e a que pode fazer com que a nossa vida se perca. O último parágrafo do evangelho de hoje o expressa com uma clareza radical:
- Aquele que quiser vir comigo, negue-se a si mesmo, carregue a sua cruz e siga-me. Vede, aquele que quiser salvar a sua vida a perderá; mas aquele que perder a sua vida por causa do Evangelho a salvará.
Este último parágrafo não é um acrescento posterior; é uma aplicação inteligente e precisa. Para nós, hoje, significa o dilema entre salvar o nosso modo de viver, a nossa maneira ocidental de entender a Jesus, o nosso conceito de culto, de tempo, de hierarquia, de igreja... salvar tudo isso ou perder tudo isso pelo Evangelho, pela Palavra. E a radicalidade, algo estremecedora, acompanha o seu fundamento, tomando as violentas palavras de Jesus a Pedro:
- Tu pensas como os homens, não como Deus!
Pensar como Deus! O que poderá ser mais acertado do que pensar como Deus? Pensar como Deus para salvar a vida, para a tornar mais útil e sobretudo mais feliz. E, pelo contrário, não pensar como Deus, procurar outro guia, fiar-se de outros critérios. Terrível perigo, deitar a perder a vida, equivocar-se no caminho.
A violência da resposta de Jesus a Pedro faz-nos pensar que também o próprio Jesus tinha de se esforçar em "pensar como Deus", que inclusive ele era continuamente tentado a pensar com outros critérios e valores... e essa é o exame pendente mais importante de toda a vida humana.
Mas, como pensa Deus? Para isso, precisamente para isso temos a Jesus, para que possamos ver com os nossos olhos, quase diríamos tocar com as nossas mãos, como pode um homem pensar como Deus.
O problema está em que no nosso cristianismo-católico-ocidental-consumista-cultual, existe o Evangelho, temos a presença de Jesus, mas temos também muito messianismo davídico, muito "Deus para nós", muito de "povo privilegiado", muito de encerrar a Deus nos nossos conceitos inquestionados.
E, a um nível pessoal, existe muito o desejo de que a Palavra não mude demasiado o que nós consideramos como vida religiosa, que em síntese é o manter o mais possível os ideiais do mundo (que pouco têm a ver com "pensar como Deus"), sem prejudicar definitivamente a vida eterna.
Ainda que em risco de entrar em interpretações demasiado concretas e questionáveis, poderíamos assinalar aspetos atuais que nos parecem derivados dessa tentação. Penso que a Igreja e os cristãos de hoje padecem as mesmas tentações que a Bíblia reflete como tentações (e pecados) de Israel... e do próprio Jesus.
Mas não é suficiente saber, não basta pensar. É inútil conhecer o caminho se seguimos por outro lado. Aqui encaixa como um anel no dedo a carta de Santiago. A fé sem obras é saber como Deus pensa sem lhe fazer caso. É esta a nossa situação?
Ao nível institucional, a Bíblia apresenta a Israel como vítima e culpável de um pecado de APROPRIAÇÃO DE DEUS. "O Deus de Israel". E todas as nações deverão aceitar ao Deus de Israel e, consequentemente, a Israel como o seu Povo Eleito, um funil pelo qual há que se passar para chegar a Deus.
Há que aceitar a Deus tal como Israel o oferece. Israel é o único que conhece a Deus, porque é o único a quem Deus se revelou: os demais povos deverão conhecer a Deus através do que Israel lhes diga d'Ele. Consequentemente, Israel é a grande intermediária cultual: todos os povos deverão adorar a Deus em Jerusalém e no seu templo, segundo os ritos e através dos sacerdotes de Israel.
E tudo isso é fundamentado na infabilidade da Palavra de Deus. Tudo o que está na Lei nos Profetas é palavra infalível de Deus, e portanto dá uma segurança absoluta a Israel e converte-o num povo privilegiado entre todas as nações. A aplicação a nós como Igreja é evidente.
Ao nível pessoal, a religião oficial de Israel revela-se na Bíblia, e muito especialmente na espiritualidade dos fariseus e doutores da lei que se confrontam com Jesus, como uma espiritualidade de um estrito cumprimento dos preceitos em busca de uma "justiça diante de Deus". Os preceitos incluem a esmola, mas com a intenção de que aquele que dá a esmola seja mais perfeito, como cumprimento de um dever em ordem a uma justiça própria.
Nada disto tem a ver com as colunas básicas do Reino. O novo Israel será fermento na massa do mundo, fazendo-o fermentar a partir de dentro, não por submissão. O próprio Deus e a sua Palavra são sal e fermento; o Deus eterno, todo-poderoso e juiz apresenta-se como alimento para a vida do mundo.
O samaritano que ajuda ao seu próximo e o centurião romano que suplica com fé são postos como exemplo aos filhos de Abraão observantes de preceitos. "Somos filhos de Abraão – este é o Templo do Senhor" são expressões de orgulho expressamente rejeitadas por Jesus. Creio que temos – no momento atual mais do que nunca – motivos para uma larga meditação sobre as nossas semelhanças com os pecados de Israel que mataram a Jesus.
Para a nossa Oração
Mais uma vez, somos convidados para ir a Jesus, conhecê-lo e segui-lo, tal como Ele é, abandonando tudo o resto. Seguimento de Cristo pobre e crucificado, a partir da conversão pessoal, a partir do serviço em todo o mundo, sem poder, sem busca da justiça diante de Deus, sem se crer ser mais do que os outros, sem pretender que a nossa metafísica é capaz de definir a Deus, reconhecendo a Palavra de Deus onde ela ressoar, dentro ou fora da Igreja, reconhecendo-a nos que servem aos seus irmãos com um coração compassivo e não apenas nos que professam conceitos ajustados à norma, confirmados pela perseguição e não pelo êxito, parecidos com o grão de trigo que morre para que seja alimento e não com o Sumo Sacerdote intermediário sagrado entre os homens e Deus.
A Igreja, as pessoas e a instituição, devem salvar-se, salvar a sua vida, não guardando a sua vida mas entregando-a para a vida do mundo. O que temos de entregar, o que não podemos procurar, é o prestígio próprio, o êxito exterior, a própria justiça diante de Deus, o monopólio da Palavra, a função de intermediário sagrado, o sentimento de privilegiados, a preferência do dogma ao serviço, a tranquilidade de estarmos salvos e sermos melhores que os outros por pertencer à Igreja, a submissão da Palavra às nossas tradições culturais e ao nosso status de vida ocidental...
Nem a Igreja como instituição nem cada um dos cristãos como pessoas são salvos por serem Igreja ou por serem cristãos: são mais do que ninguém convidados a seguir a Jesus pobre e crucificado, a negar-se a si mesmo e não a salvar a sua vida, o seu êxito, a sua justiça. Só assim poderão ser sal, levedura, alimento para a vida do mundo, de todo o mundo, que é o destinatário da Salvação (para ler mais sobre este tema, ver Giulio Giardi, "A túnica rasgada", cap. III: O Eclesiocentrismo).
Este domingo oferece-nos uma urgência: a de nos preocuparmos por ir mudando a "nossa maneira de pensar", preocupados por não anular a nossa vida, para lhe dar um sentido, para procurar corretamente a felicidade. E, para isso, a urgente necessidade de ter a Jesus como referência do nosso modo de pensar e de atuar.
Para isso, entre outras razões, é tão importante procurar momentos para contemplar a Jesus, para ler o Evangelho, para comparar os meus modos de actuar com os seus. Nós, que dizemos que seguimos a Jesus, temos de ver com clareza qual o caminho a tomar se queremos de verdade segui-lo. É urgente para todos os cristãos contemplar a Jesus, dar tempo para o conhecer. Sem isso, segui-lo-emos mal, porque o conheceremos mal.
José Enrique Galarreta
(trad. Rui Vasconcelos, Braga
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